
Mr. Nobody

Teoria do Caos, Efeito Borboleta, Estocástico, Teoria das Cordas, Eterno Retorno, Universos Paralelos, Flecha do tempo, Superstição do Pombo, Big Crunch , Imortalidade, e inúmeras outras teorias científicas e filosóficas são pano de fundo para a construção da obra em questão. A quem ler essa introdução sem conhecer a obra, ocorrerá que se trata de uma grande sopa teórica, uma miscelânea sem pé nem cabeça, contraditória por definição. Mr. Nobody é o nome do filme. Coube a mim resenhar esta obra cinematográfica que, sem medo de cometer um erro, elejo como uma das mais brilhantes propostas de imersão filosófica da atualidade. Apesar desta tarefa ter sido fruto de meu próprio desejo manifesto em discutir o filme ao qual se refere, devo admitir, a tarefa não é simples. Assim, demorei algum tempo sem conseguir, sequer, decidir como iniciaria meu escrito. Talvez um jeito melhor de desenvolver a presente resenha, pensei, fosse dividindo a inquietação que Mr. Nobody trouxe aos meus dias. Afinal, o que deveria ficar de mais valioso após o contato com arte e filosofia, senão a inquietação promovida pelo encontro e as transformações que dela podem resultar? Eis a interrogação que Mr. Nobody trouxe a mim e que comigo permaneceu por longos meses após assistir à obra: O que nós somos, e a vida a qual vivemos, o que/quem é que faz? Existe qualquer perspectiva em nossas vidas sobre a qual possamos ter alguma certeza?
Gostamos de acreditar que somos únicos, dotados de autonomia e essência, às quais devemos nos agarrar em honra de nós mesmos. Costumamos crer que detemos nas mãos as nossas próprias escolhas e que o que somos, a despeito de quaisquer circunstâncias, tende a permanecer, estando sujeito apenas à evolução ou decadência naturais que partem sempre de uma raiz sólida. Talvez isso seja verdade, talvez um sonho/ou pesadelo. Mr. Nobody trabalha esta e outras reflexões inerentes à natureza do ser e da existência. No entanto, não engessa sua proposta em respostas encerradas, ao contrário, abre margem a infinitas interpretações, respostas e desfechos possíveis. É preciso estar atento às linhas cronológicas para identificar a existência de realidades dentro de outras realidades. E é preciso estar atento ainda às referências que surgem em cada uma delas, de modo a reconhecê-las ora como explicativas do propósito maior do filme, ora como potencializadoras de um sentido ou outro para o mesmo. Demandaria muito tempo discutir cada uma das referências teóricas presentes na obra, mesmo que somente àquelas das quais me dou conta ou sobre as quais me sinto minimamente apta a falar. Pretendo, portanto, tocar em apenas alguns pontos de reflexão que imagino interessantes de serem observados, deixando espaço, inclusive, para que cada leitor busque seu próprio caminho de interpretação e possibilidades para a obra. Mas antes disso preciso introduzir ao texto uma breve Sinopse.
É difícil escrever uma Sinopse para o filme, já que o mesmo não trabalha com um enredo que se comporte dentro dos limites de possível concebidos pela consciência humana. Não há uma história de Mr. Nobody a se contar. Há várias. E essas várias histórias compõem a fabulosa teia à qual tentarei descrever brevemente em parágrafo. Nemo Nobody, personagem em torno do qual a obra constrói sua proposta, é o último mortal existente numa realidade onde a humanidade superou a finitude, tendo conquistado a tão dourada imortalidade. Logo nas primeiras cenas somos apresentados a ele, que a esta altura é um Senhor de 118 anos, cujo a memória lhe falha a história de sua vida. Nemo Nobody não se lembra da história de sua vida, mas ora, ele é o último mortal do qual se tem notícias, todos estão interessados em sua história. E então, mediante as curiosas indagações de seus tutores, Nemo tenta recordar-se de sua vida, dando partida a uma viagem de regressão. No entanto, nada parece fazer sentido. Várias vidas e desfechos parecem ser contados. Não há encaixes lógicos, não há, aparentemente, uma história à qual se contar que obedeça à lógica de realidade a qual conhecemos. Não há o real concreto, mas potencialidades, ou múltiplas realidades. Sim, Nemo Nobody possui lembranças de inúmeras vidas possíveis, e narrará uma a uma por vez, ora alternando histórias, ora entrelaçando fatos de realidades diferentes às quais viveu, ou poderia ter vivido... Não se sabe. Refletindo à medida que se lembra, Nemo tenta descrever as escolhas e circunstâncias que deram origem a cada uma daquelas vidas que lhe vem à lembrança. Bom, acho que uma Sinopse que passe deste ponto acabará se tornando um detestável spoiler. Mais do que já foi, já que o dito acima só fica claro a certa altura do filme. Em resumo, Nemo é um senhor que busca se recordar de sua vida, mas que, aparentemente, recorda-se de cada vida que viveu ou poderia ter vivido, em decorrência de suas escolhas e do acaso. São aproximadamente dez vidas possíveis, embaralhadas em memórias perdidas. Aconselho que qualquer leitor que ainda não conheça o filme, não passe deste ponto sem antes assisti-lo.
Podemos iniciar nosso exercício de interpretação e reflexão. Por que Nemo não se lembra de nada com clareza? Por que parece se lembrar de tantas vidas distintas? Algumas respostas são possíveis. Alguns dizem observar aqui uma referência ao conceito de Big Crunch e Flecha do Tempo. Apesar da licença poética para a distorção na aplicação do conceito, partindo desta perspectiva, a metáfora é possível. Quando Nemo acorda com 118 anos e não se recorda de nada, naquele momento ele ainda não viveu o passado. A realidade regride do ponto limite até o ponto inicial. Nemo não se recorda de uma única vida, a vida que viveu, porque naquele momento a flecha do tempo faz o caminho contrário, ou passa a inexistir, torna-se irreal. Nemo então começa a se recordar de inúmeras vidas que teriam sido possíveis para sua existência, a depender de suas escolhas, do acaso, ou do destino. Mas então, por que ele chega a se lembrar, mesmo que sem clareza, se ainda não aconteceu? Ele se lembra por possuir um dom, conforme se explica no início do filme. Ele tem o dom de não se esquecer. Recebera este dom antes de vir à terra, quando os anjos que à mesma lhe enviaram se esqueceram de dar a ele a habilidade de esquecer-se dos momentos pré parto. Na minha visão, a introdução do dom no roteiro foi a forma possível de contar a história de Nemo. Uma justificativa para o enredo. Ele pode se lembrar, logo, há o que contar. Quando Nemo acorda aos 118 anos experimenta uma espécie de parto. O Big Crunch, o retorno, em metáfora. A única razão para se lembrar dos acontecimentos antes disso é dom que possui. Neste caso o personagem seria uma alegoria a possibilitar a abordagem em metáfora que a obra tenta fazer acerca das possíveis implicações de um Big Crunch, tal como de outras teorias científicas e filosóficas, para existência humana. E o dom seria o subterfúgio que tornaria possível tal proposta. Nemo estaria, através de seu dom, numa posição superior à nossa no que diz respeito à percepção e limitações cognitivas. O personagem é sensível às implicações para a existência humana, das teorias abordadas, logo, é possível que se empreenda o exercício de imaginação acerca de como seria nossa própria apreensão de tempo e realidade uma vez que fossemos dotados de capacidade de percepção e consciência mais evoluída, e uma vez consideradas concretas as teorias trabalhadas.
Outra possível interpretação flerta com a teoria das cordas. Conhecemos e aceitamos hoje a existência de quatro dimensões. Três delas são espaciais e uma é temporal. No entanto, algumas teorias científicas afirmam a existência de outras dimensões desconhecidas ou, conhecidas porém ainda não completamente verificadas enquanto dimensões. A teoria das cordas, tal como a Teoria de Tudo, é uma destas teorias. Seria possível, numa realidade onde nos tornássemos capazes de perceber a coexistência das várias dimensões além daquelas que conhecemos ou admitimos, que nossa percepção acerca do que é real fosse completamente diferente? Se algumas dessas dimensões fossem temporais e pudéssemos percebê-las, ainda seríamos capazes de distinguir ilusão e realidade? Ou melhor, o conceito de ilusão e realidade ainda seriam os mesmos? Mais uma vez Nemo é aqui a alegoria que possibilitará ao enredo que se aborde a teoria em termos de implicações para a nossa existência. Devanear sobre quão longe essas indagações pode nos levar é um prazeroso exercício de tentativa de expansão da consciência.
Há ainda a interpretação possível que passa pela Teoria dos Universos Paralelos. Introduzindo muito superficialmente o que seria a teoria, assim como tentei fazer com as outras, ela basicamente supõe que para cada realidade possível, existem infinitas outras semelhantes. Quando dizemos que ao fazermos uma escolha estamos abrindo mão de todas as demais escolhas possíveis e consequentemente de suas implicações, consideramos a concretização de uma única realidade. Na Teoria dos Universos paralelos não existem apenas infinitas potencialidades, mas infinitas realidades concretas. Além do “você” que neste momento está na frente de um computador lendo esse texto, existe um outro você que está tomando banho, outro que está se casando, outro que é Irlandês, outro que vive numa realidade onde a ciência já avançou tanto que a finitude já não existe para a humanidade, etc. Essa é possivelmente uma das referências do filme e dá origem a outra possível interpretação: Todas as vidas de Mr. Nobody foram reais, mas um Nemo jamais será capaz de ter conhecimento de outro Nemo. Jamais se encontrarão. E mais uma vez o Nemo de 118 anos só percebe essas várias realidades devido a seu dom, algo impossível para um ser humano normal.
Há ainda outras explicações possíveis para o fato de serem contadas várias histórias de Nemo (como eu disse, não tocaria em todas, apenas nas mais tangíveis). Eu, particularmente, entendo que a obra não trabalha apenas uma dessas teorias, mas todas elas e outras simultaneamente. No entanto, nenhuma dessas teorias dá conta da inquietação que no início da resenha eu dividi com vocês. Talvez o ponto alto da obra seja justamente a reflexão que a mesma estimula em nós sobre o que determina a concretização de uma potencialidade ou outra, sobre o que determina a diferença entre as várias realidades concretas, ou sobre o que determina realidade e potencialidade em si enquanto conceitos. Poderíamos partir dos três seguintes conceitos para tentar desatar esses nós: o conceito de escolha e autonomia do indivíduo; de destino; e de aleatoriedade. Para cada um destes observamos referências filosóficas distintas que, mais uma vez, são trabalhadas simultaneamente, deixando abertas as margens para que decidamos por nós mesmos a interpretação que consideremos plausível.
Se decidirmos assumir que construímos nossa história e caminhada, ou histórias e caminhadas, a partir de nossa individualidade e das decisões que, dotados de livre arbítrio, nós tomamos, então teríamos que considerar algumas outras abordagens científicas e filosóficas para discutir decisão e autonomia. Precisaríamos primeiro definir o que entendemos por decisão e relacionar este entendimento a perspectivas de individualidade Vs Coletividade, sob a tutela da sociologia. Precisaríamos ainda adicionar à ideia os imperativos biológicos e psicológicos (aqui a superstição do pombo, apresentada na primeira cena do filme, dá uma sugestão de por onde começar), para então tentar pensar decisão em seu sentido amplo. Feito isso poderíamos nos dar conta do abismo contrastante com qualquer certeza. Autonomia e decisão são, ora pois, resultados condicionados por conjecturas múltiplas e muitas vezes incompreensíveis para nós. Nem mesmo gosto ou personalidade escapam à construção que, muitas vezes independente de nós, determina nossos rumos sem que nos demos conta disso, do auge de uma arrogância natural que se pretende detentora do controle e do sentido das coisas que nos acometem. A questão que aqui permanece é: Se nossas vidas são determinadas por nosso livre arbítrio e poder de decisão, o que define a esses últimos?
Por outro lado, assumindo que sejamos guiados e determinados por aleatoriedade, teríamos que falar em Caos, em Efeito Borboleta e em Estocástica, nas múltiplas linguagens e na história do conhecimento humano que ainda hoje é limitado e parcial. Assim como na possibilidade anterior, não adentrarei na discussão por n motivos. Mas posso ao menos sugerir que busquemos entender cada um destes conceitos mencionados para tentarmos alcançar uma definição pessoal plausível para aquilo que viríamos a chamar de aleatoriedade. Aleatoriedade, o que é? O que constitui o acaso que nos impacta a todo tempo? Essa questão é relevante à nossa existência? Caso seja, em que medida o será? O que chamamos de aleatório é de fato aleatório? (Deixo aqui um link para um pequeno vídeo de introdução às teorias desta seção que se relacionam às questões colocadas: https://www.youtube.com/watch?v=C4eHJ8ZJgG4 )
Poderíamos ainda pensar nossas vidas e trajetórias como sendo definidas por uma espécie de destino. Aqui precisaríamos falar em arquitetura inteligente, deus enquanto conceito ou realidade, eterno retorno, karma e outros. Irei me ater exclusivamente ao conceito filosófico de Eterno Retorno, cunhado por Nietzsche. Como podemos observar, Nemo parece viver uma específica lógica de repetição, independente de qual vida o acaso ou suas decisões lhes proporcionem. O Eterno Retorno discute a existência de ciclos recorrentes que são comuns ao passado, presente e futuro da humanidade como um todo, mas que, no entanto, podem ser aplicados em observação à trajetória dos seres individualmente. Nemo, assim como qualquer mortal, estaria fadado a viver a repetição de ciclos de angústia e indecisão, assertividade e prazer, perda e conflito, independente de qualquer vida que lhe fosse possível. E se mesclamos, com muita ousadia e risco de uma total confusão, o conceito à ideia de karma, somos levados a refletir sobre a recorrência de determinados desfechos em nossas vidas para além de qualquer aleatoriedade ou decisão. O que ou quem é que decide, afinal, os nossos caminhos?
Particularmente, não vejo nenhuma possibilidade de resposta à indagação sobre o sentido do filme que não inclua todos esses conceitos. Se somos guiados por nossa individualidade e decisões, ora, elas dependerão de uma série de circunstâncias "aleatórias", ou mesmo, serão definidas por elas. E se a aleatoriedade é imperativa, talvez seja o caminho pelo qual o destino dê suas cartas. Ou talvez o próprio destino seja apenas a impossibilidade de certeza sobre o por vir, o “seja o que tiver que ser”, ou o “seja o que deus quiser”, para os que creem em Deus. Há muitos conceitos não mencionados aqui, e nenhum verdadeiramente esmiuçado. Contudo, pretendi expor a essência que fui capaz de perceber da obra... Tudo cabe, desde que não se deseje ter limites para a consciência e imaginação. Não há respostas encerradas às quais a obra nos apresente, porque não há respostas encerradas às quais possamos alcançar enquanto humanos.
E você? Qual é a sua interpretação? O que Mr. Nobody lhe proporciona?
Por Profane Qz.